As cidades não são apenas um palco estático para as interações sociais, mas acabam por ser continuidamente (re)produzidas a partir das condicionantes históricas, socioculturais, políticas e económicas em voga (Massey 1996). De facto, como argumenta Burgum, a cidade na sua arquitetura e infraestruturas torna-se um arquivo de “contested urban memories, denied histories, and (im)possibilities” (Burgum 2022, 512). No caso da capital portuguesa, a malha urbana encapsula, por um lado, traços da história da expansão ultramarina e do colonialismo, com o Padrão dos Descobrimentos como o símbolo de um passado supostamente glorioso, tornando a ausência até à data de monumentos públicos que testemunhem a violência e opressão do sistema colonial ainda mais marcante. Por outro lado, olhando fora dos marcos turísticos, Lisboa conta as histórias e as memórias da resistência ao colonialismo e à discriminação e racialização que persistem na sociedade portuguesa mesmo na altura das celebrações dos 50 anos da Revolução de 25 de abril.
Partindo das premissas teóricas na interseção de Estudos Urbanos e Estudos Críticos Arquivistas, a presente comunicação pretende estudar obras literárias contemporâneas que retratam a presença e importantemente, a negociação de pertença entre as comunidades lisboetas africanas e afrodescendentes. Ficção, como argumentarei, torna-se uma fonte de arquivo imaginária, usando o conceito introduzido por Gilliland and Caswell (2016) para poder refletir sobre o afeto surgido face às lacunas e os silêncios dos arquivos. Através de uma leitura comparada de Os vivos, o morto e o peixe frito de Ondjaki e Um preto muito português de Telma Tvon, analisarei o imaginário narrativo de Lisboa como um arquivo afro-português que abre o espaço para explorar as questões de afeto, comunidade e direito à cidade no contexto pós-colonial e pós-migratório.
Narrando Lisboa: traços afetivos de um arquivo afro-português
Kamila Krakowska Rodrigues