A reconfiguração de cosmologias africanas na diáspora: “Irmandade das almas”, sudeste brasileiro, séc. XIX

Yaracê Morena Boregas e Rêgo

A partir da História Social, apresento questões sobre práticas religiosas e de cura promovidas pela autodenominada “Irmandade das Almas”, agrupamento formado por africanos no sudeste brasileiro do pós-abolição imediato.
A pesquisa maior busca reconstituir a história e organização dessa “Irmandade” com base em fontes policiais do século XIX, que aludem a práticas de cura a partir do uso de diversos elementos presentes no “culto às almas”. Pretendo então apresentar alguns desses elementos, que venho analisando à luz dos estudos sobre expressões religiosas centro-africanas, considerando seus processos históricos de reinvenções contínuas, construídas a partir das interconexões culturais da diáspora e do contexto escravista. A dimensão religiosa parece então fecunda para abordar cosmologias e epistemologias africanas envolvidas no tráfico transatlântico, uma vez que é capaz de articular elementos profundos e estruturantes das experiências sociais desses povos.
Parto das proposições do historiador Robert Slenes sobre a formação, nas senzalas vale-paraibanas de meados do século XIX, de uma matriz cultural relacionada à identidade comum de vários grupos da África Centro-Ocidental. Uma das hipóteses relaciona as práticas mencionadas nas fontes com os cultos de aflição, essencialmente comunitários, de importante função ordenadora para africanos centro-ocidentais pois visavam restaurar a saúde social de seu grupo a partir da mediação de especialistas com forças espirituais, o que poderia envolver um trânsito entre o mundo dos vivos e o dos não vivos.
Assim, a menção das fontes a “raízes de muitas espécies”, “giz”, “tranças de cabelo”, “caramujos diversos traspassados de alfinetes”, “imagens grotescas de Santo Antonio” dentre outros, parecem nos situar num complexo cultural caracterizado por uma flexibilidade que incorpora novos símbolos e estratégias religiosas, para além do sincretismo ou conversão. Apontam para a multiplicação multifacetada de práticas culturais e religiosas que atestam também a inventividade e a plasticidade adquiridas durante a escravidão.