Paul Ricoeur, em A memória, a história e o esquecimento, apresenta a fenomenologia da memória, estruturada com base naquilo que se tem lembrança e sobre quem incide a memória do que é narrado. Assim, pensar na memória é referir-se a um ato consciente e interativo, por meio do qual a perspectiva humana se relaciona às ações próprias e às redes afetivas que vão moldando a existência. É nessa perspectiva que se conduzirá este estudo, uma vez que se recorre ao signo literário para perceber as nuances que marcaram o surgimento de nações livres, as quais foram idealizadas pelos sujeitos históricos que colocaram em curso os projetos de nação. Neste trabalho, objetiva-se analisar a obra Biografia do Língua, do escritor caboverdiano Mário Lúcio de Sousa sob o viés da construção do espaço-tempo por meio das memórias da personagem Senhor Condenado. A personagem, um condenado de guerra, como último desejo antes da morte, tem seu pedido atendido: contar a história de Língua. A narração detalhada, em que as lacunas territoriais são preenchidas pelo ato de imaginar, integra a ideia de que, embora a narrativa traga ao centro de discussão o tempo vivido pela personagem Língua, são as memórias do narrador que projetam essa narrativa para um terceiro-tempo. Com isso, percorre-se o traçado rememorativo da personagem, a fim de evidenciar o entrecruzamento dessas memórias com a própria história da nação caboverdiana, sob a perspectiva do espaço ocupado. Lançar o olhar sobre essas histórias é inscrever uma nova visão de mundo, com vistas a uma compreensão intrínseca sobre aquilo que foi incorporado ao imaginário social. Ademais, as discussões sobre as questões de memória e identidade emergem por meio da confluência de vozes que habitam e dialogam com as raízes periféricas situadas naquilo que Bhabha chamará de entre-lugar, ou seja, na intersecção dessas dimensões.
DO SER-TEMPO: O ENTRE-ESPAÇO DAS MEMÓRIAS DO NARRADOR EM “A BIOGRAFIA DO LÍNGUA”, DE MÁRIO LÚCIO DE SOUSA
Jéssica Schmitz