45. A Diáspora Africana e Suas Margens: ancestralidade, cultura e religiosidade no Brasil

Valéria Amim
Universidade Estadual de Santa Cruz/UESC. Ilhéus, Bahia, Brasil
Marlúcia Mendes da Rocha
Universidade Estadual de Santa Cruz. Ilhéus, Bahia, Brasil

Na abordagem de tradições religiosas de origem africana, não faz sentido recorrer à generalização. Isto suporia a existência de uma única África. Não se pode considerar apenas um homem africano, denominador comum, de todos os grupos étnicos do continente e “aplicável” a todas as regiões. Observa-se a existência de traços semelhantes em África, como a percepção do sagrado em tudo; a tensão relacional permanente entre o mundo visível e o invisível; entre o mundo dos vivos e o dos mortos; o sentido comunitário de existência; o respeito religioso pelos ancestrais, que vem até os parentais; o cultivo do significado dos sonhos associado às diversas práticas de oráculo e divinação. Entretanto, observam-se também numerosas diferenças: sistema de divindades e suas correspondentes mitologias; iconografias sagradas; interdições religiosas e regulações sociais (inclusive alimentares e sexuais) delas resultantes. Estes aspectos podem variar de uma região a outra, de uma etnia a outra, de aldeia a aldeia.
No Brasil, esses elementos da tradição africana serviram de matriz na composição das religiões afro-brasileiras, formando um amplo repertório mítico ricamente matizado e produzindo uma considerável diversidade étnico-cultural-religiosa. No caso do Candomblé, estas especificidades correspondem às variantes regionais, da presença de divindades relacionadas à região africana de origem, do culto aos antepassados, das práticas divinatórias, dos elementos rituais, do transe etc., componentes das identidades étnicas e base de diferenciação entre as nações de Candomblé.
O termo nação, utilizado como demarcador de fronteiras entre os grupos, não deve ser pensado de forma dissociada de outros setores da vida social (étnico, religioso, territorial, linguístico e político), uma vez que a religiosidade se relaciona permanentemente com a vida cotidiana. Isso posto, é preciso que se perceba a mobilidade deste termo frente aos diversos significados atribuídos a ele desde o século XVII.
Parés (2006) aborda o processo da formação de nações de Candomblé no Brasil numa perspectiva centrada no âmbito de uma etnicidade relacional. Inicia sua análise sobre o uso do termo a partir de seu caráter operacional, expresso pela forma utilizada por traficantes de escravos, missionários e oficiais administrativos dos estados soberanos europeus, num período em que o termo nação adquiriu o mesmo significado de país ou reino, quando estes se referiam aos vários grupos autóctones com que se deparavam.
Em relação aos estados soberanos, o autor observa que houve na África uma projeção do contexto europeu da época, que privilegiava um sentido de identidade coletiva baseada na filiação por parentescos a certas chefias normalmente organizadas no entorno das instituições monárquicas. Contudo, independentemente dessa projeção, na África, a identidade do grupo decorria dos vínculos de parentesco das corporações familiares que reconheciam uma ancestralidade comum. A identidade étnica ou comunitária estava, portanto, assegurada através do culto de alguns ancestrais ou de outras entidades espirituais.
A integração dos vários campos de sociabilidade (religião, arte, política) nos acontecimentos da vida comunitária se dava por meio de um vasto repertório simbólico como, por exemplo, as pinturas corporais e as incisões na pele (sobretudo no rosto, mas também, no braço ou em outras partes do corpo) que relembravam as marcas tribais da África ancestral. O corpo pode ser considerado elemento e forma de pertença – e ao mesmo tempo de diferenciação, adquirindo tal sentido em função do que se vê através do processo de interação com o religioso, em que se encontram os preceitos de purificação e preparo do corpo, as interdições que dizem respeito à alimentação e à atividade sexual, até o seu próprio movimento, o ritmo, a dança. A construção ritual do corpo e do espaço vai se constituir num elemento cultural de diferenciação e identificação entre as diversas nações de Candomblé. Concomitantemente, também eram a cidade – ou território de moradia -, bem como a língua, considerados importantes fatores para as denominações de identidades grupais.
Outrossim, na diáspora africana, a linearidade histórico-cultural que habitou, durante muito tempo, o imaginário de conceitos como pertencimento, identidade e geografia é, talvez, um aspecto intrigante. Se pensarmos o quanto esgotadas se tornaram as explicações sobre as relações entre lugar, posição e consciência, estas não dão conta da ruptura com o território, aspecto determinante da identidade até então. Gilroy (2001, p.13) observa que as culturas do Atlântico negro
[…] criaram veículos de consolação através da mediação do sofrimento. Elas especificam formas estéticas e contra-estéticas e uma distinta dramaturgia de recordação que, caracteristicamente, separam genealogia da geografia, e o ato de lidar com o de pertencer.
A diáspora sugeriu modos diferentes de ser, fornecendo outras compreensões sobre solidariedade, semelhança e relações de parentesco. Formas de agenciamentos micro-políticos que transversalizam culturas, movimentos de resistência e de transformação, entre outros processos visíveis, em uma escala mais generalizante. A pluralidade produzida no Brasil supera a condição de lamentação social que subjaz a separação forçada, a brutalidade, a perda: consequências do exílio. Para Gilroy “[…] a alienação natal e o estranhamento cultural são capazes de conferir criatividade e de gerar prazer, assim como de acabar com a ansiedade em relação à coerência da raça ou da nação e à estabilidade de uma imaginária base étnica” (2001, p. 20).
Em tal sentido, os aspectos que a diáspora apresenta são múltiplos. No Brasil, a ação do colonizador europeu frente às culturas indígenas explica porque cultos como o da Iara, e de tantos outros rituais indígenas, não encontraram expressão na sociedade mais ampla, o mesmo não se pode dizer sobre os cultos africanos. A condição de escravo forjou a memória da terra mãe, alimentando, significativamente, o legado religioso que, ainda hoje, circula nos terreiros e espraia-se pela sociedade geral: a crença de que a vida é o bem supremo. Essa forma de conceber a vida, totalmente diferente da tradição cristã, presente no Brasil através dos ritos, estes, forjados segundo temas míticos preexistentes.
A condição da entidade Iemanjá, no Brasil, é um belo exemplo da forja diaspórica, pois Iemanjá é tida e considerada mãe das águas salgadas pelos fiéis e adeptos das religiões de matriz africana; em África, ela é soberana na região de Egba e cultuada no rio Yemoja. As guerras entre as nações iorubás implicaram no êxodo dos Egbos em direção ao oeste, precisamente Abeokutá, no início do século XIX). No Brasil, Iemanjá possui a imagem arquetípica da grande mãe, de seios fartos, cujas imagens se encontram representadas nos mitos.
Segundo Jung (2008), o arquétipo se configura numa matriz abstrata, energética, forjada a partir de valores universais pelos homens em sua existência terrena. Assim, explica-se a constante imagem da Grande-Mãe em diversas culturas e épocas distintas. A presença desta Grande-Mãe, no Brasil, deu-se através de imagens arquetípicas múltiplas representadas pelos matizes culturais indígenas, africanos e europeus. Tal aspecto contribuiu para a forja de um culto plural que, não necessariamente, correspondesse à imagem arquetípica africana.
Os povos, os mais diversos, sempre construíram imagens arquetípicas da grande mãe. Ela se configura como a mãe ancestral, espiritual. No caso brasileiro, duas imagens coabitam: Nossa Senhora, dos católicos, e Iemanjá, dos cultos afro-brasileiros. Parte da população cultua apenas Nossa Senhora; parte cultua Iemanjá e outra parte cultua ambas as imagens que se fundem em uma só. Isso acontece porque a arquetipologia social está no inconsciente popular, embora as imagens arquetípicas sejam elaboradas com retalhos dos imaginários das etnias em contato (Póvoas, 2007).
O culto a Xangô ocupa lugar central em Oyó; Oxum é marcante em Ijexá; Oxossi em Ketu; Ogum em Ifé, aspecto recorrente com as outras divindades do panteon africano. Em outras palavras, a posição ocupada pelas divindades se relaciona profundamente a história da cidade onde figuram como protetores. Isto posto, outra noção emerge, a de que a religião africana está diretamente ligada à noção de família. Família numerosa, cuja origem se dá por um mesmo antepassado, que envolve os vivos e os mortos. As divindades em princípio seriam um ancestral divinizado, que em vida “[…] estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como caça, o trabalho com metais.” (Verger, 1996, 18).
Laplantine e Nouss (2002) ressaltam a importância de considerar as práticas cotidianas, os rituais, as manifestações artísticas e as experiências individuais na compreensão da mestiçagem como um processo contínuo de interação cultural que cria um amálgama entre as identidades. A mestiçagem é fruto do encontro, das viagens, onde já não é mais possível separar os elementos que se imiscuíram.

Bibliografia

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Trad. MOREIRA, Cid Knipel. São Paulo: Editora 34, 2001.
LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A Mestiçagem. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual na nação jeje na Bahia.Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2006.
PÓVOAS, Rui do Carmo. Da porteira para fora: mundo de preto em terra de branco. Ilhéus, BA: EDITUS, 2007.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1981.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. trad. APPY, Maria Luiza; SILVA, Dora Mariana R. Ferreira da. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.