Qualquer leitura, independentemente da sua origem, ao privilegiar uma análise monocultural da diversidade do mundo, reproduz uma lógica exclusivista. O projeto racional eurocêntrico vai criar a alteridade como um espaço/tempo anterior, onde circulavam saberes considerados ‘inferiores’, com alcance local (MENESES, 2018). Este foi o contraponto que legitimou a imposição violenta da estruturação hierárquica que está na base da relação de poder-saber do moderno pensamento científico (ALATAS, 1974). Esta relação opera através da permanente imposição de um pensamento abissal que divide o mundo em duas partes: o mundo moderno eurocêntrico, de um lado, e os ‘outros’ espaços, coloniais, da tradição, dos primitivos, do ‘outro’ lado da linha (SANTOS, 2007: 45-47). Neste contexto, o Sul global refere-se metaforicamente aos seres e saberes que foram silenciados, localizados ou destruídos fruto da relação violenta, do capitalismo, colonialismo e patriarcado sobre ‘a alteridade. É por isso que o Sul global é, simultaneamente, uma proposta utópica ontológica, política e epistemológica.
No campo da educação – domínio da cultura -, a colonização tem atuado através de processos de violenta intervenção política e epistemológica, os quais resultaram na suspensão do crescimento orgânico das instituições e das histórias dos colonizados. Como estrutura conceptual geradora de politicas de violência o colonialismo tem, necessariamente, várias leituras, dependendo das relações de poder que justificam esta intervenção. Se nos países colonizadores a ação colonial se legitimou e continua a legitimar-se sob a forma de ‘contributo civilizador’, para os colonizados, falando a partir da sua experiência, o colonialismo encerra em si uma violenta força opressora, como identificado por Césaire:
Eu, falo de sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas (CÉSAIRE, 1955: 12).
Consequentemente a colonização tem-se traduzido em incontáveis atos de genocídio e epistemicídio (SANTOS, 2018), linguicídio (THIONG’O, 1993) e injustiça epistémica (BHARGAVA, 2013), cujos efeitos se continuam a sentir no quotidiano de muitas realidades educativas. A conquista, esse objeto da aventura colonial, refere-se não apenas a bens e de terras; pelo contrário, o seu objetivo final é a conquista das culturas e mentes dos colonizados, preenchendo as suas referências com propostas eurocêntricas. De forma premeditada, a colonização moderna, como instrumento de poder, tem procurado de forma insidiosa apagar ou reafirmar a periferização dos seres e saberes que não se conformam com as suas referências, apagando as referências a outros passados anteriores à chegada europeia. Um dos pilares deste processo, sobretudo no que se tem vindo a teorizar como colónias de povoamento (MENESES, 2018), é a tentativa de ou destruir ou secundarizar os saberes das pessoas colonizadas e subalternizadas, através da imposição violenta de conceitos e categorias exógenas que garantiram e continuam a garantir a representação e direção geopolítica eurocêntrica dos ‘novos’ territórios e sujeitos (MUDIMBE, 1988). Ao tentar interromper as prioridades educativas das sociedades submetidas, o colonialismo produziu (re)construções de identidades e histórias, reconstruindo, a partir das suas referências, a narrativa e a imagem dos colonizados (MENESES, 2016).
Nos atuais contextos africanos, apesar de a maioria das colónias ter atingido a independência política, a permanência da relação colonial continua presente ao nível político e epistemológico – os saberes dos ‘outros’ continuam a ser conceptualizados como inferiores ou locais, reproduzindo a dominação epistemológica colonizador-colonizado. Em muitos dos países que saíram da relação colonial o moderno projeto eurocêntrico continua a perpetuar-se através da educação, onde escola tem habitualmente o papel de padronizar e de homogeneizar o saber considerado válido. O eurocentrismo, como projeto civilizador, apoia-se num um imenso corpo de conhecimento hegemónico: as epistemologias do Norte. Insistindo no mito da ‘Europa’ como centro do saber (MBEMBE, 2014: 128), este projeto moderno insiste em impor-se – ao nível das categorias fundamentais – como espelho da sociedade do conhecimento, gerando desta forma um desconhecimento abissal arrogante sobre o lado colonizado. É assim que se perpetua a o não reconhecimento dos seres e dos saberes que (re)existem nos territórios, submetidos a opressão, o Sul global.
Uma abordagem global ao processo educativo colonial revela a natureza paradoxal do processo de colonização, associada a várias tentativas de assimilação e de homogeneização cultural (BAGCHI et al., 2014). Porém, como Paulo Freire sublinhou (1987), a tomada de consciência sobre a natureza da sua situação pelos oprimidos, assim como a identificação do opressor, são elementos chave para um envolvimento numa luta libertadora, a partir das suas forças, experiências vividas e saberes.
Entre os povos de antigas colónias de povoamento, a permanência das relações coloniais é obvia. Um dos exemplos é o da ‘obrigação’ do uso de línguas coloniais na educação (com as línguas nacionais/autóctones a serem relegadas para uso local, substituídas pelas línguas dos colonizadores); outros exemplos advêm da expropriação de fragmentos de saberes dos mundos indígenas, os quais são extraídos e apropriados pelas epistemologias do Norte para construir a riqueza dos colonizadores (TUCK e YANG, 2012: 4). A ocupação dos territórios, a transformação dos seus povos em estrangeiros na sua própria terra é um dos exemplos que ilustra a íntima relação entre o capitalismo e o colonialismo racial, uma relação repleta de violência: “Eles [colonos] chegaram, Eles viram, Eles nomearam e Eles impuseram-se” (SMITH, 1999: 80).
Na senda da análise de Fanon sobre a violência colonial, neste painel o colonialismo é usado num sentido amplo para fazer referência aos modos modernos de dominação baseados na privação epistemológica e ontológica, ou seja, a recusa em reconhecer a humanidade plena do outro (MENESES, 2018). A participação nos processos emancipadores do Sul tem-se revelado instrumental na denuncia das situações de ‘subalternidade’ e silenciamento epistémico e ontológico, e na legitimação de saberes forjados nestas lutas por uma justiça global, social, económica e epistemicamente mais igualitária, onde a pedagogia da e para a liberdade, é uma ação coletiva (CARVALHO, 2023). A ação libertadora, fruto da tomada de consciência das comunidades, dos grupos oprimidos (FREIRE, 1987: 56) traduz o carácter eminentemente pedagógico de qualquer transformação revolucionária, em que o método é a própria consciência enquanto caminho para algo apreendido com intencionalidade. Aqui, educador e educandos estão mutuamente envolvidos na mesma tarefa enquanto sujeitos, desmistificam a realidade e criticando-a para conhecê-la melhor, recriando o conhecimento, descobrindo-se como (re)fazedores permanentes de saberes que desafiam as injustiças cognitivas. Esta opção pedagógica assenta no reconhecimento de presença de várias formas de ensinar e aprender. Este reconhecimento espelha o facto de a educação operar em múltiplos contextos, mesmo onde não há escola oficial, através de redes e estruturas sociais que garantem a manutenção e transmissão de saberes entre gerações. Como Brandão destaca, “não há uma forma única de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante” (2007: 9). Sendo assim, que saberes deverão estar presentes num processo educativo emancipador, quando a vida de inúmeros povos e comunidades do Sul global está em risco? Que saberes transportam as mulheres comuns, cujas falas são frequentemente omitidas?
O enfoque deste painel centrar-se-á numa análise crítica em torno a dois eixos: por um lado, a persistência do legado colonial na educação contemporânea, um legado que produz uma “mente acrítica e imitativa, dominada por uma fonte externa, cujo pensamento torna impossível qualquer perspetiva independente” (ALATAS, 1974: 692); por outro lado, procura, a partir de alguns exemplos situados, valorizar a diversidade e a especificidade de outras experiências e saberes através das lentes da educação relacionadas à (re)produção de saberes, às línguas e às práticas culturais. Essas interconexões são fundamentais para nossa compreensão das ecologias de saberes, e para o desenvolvimento de traduções interculturais a partir de uma praxis de descolonização.
18. A Educação num mundo interconectado: experiências de libertação do Sul global
Bibliografia
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BAGCHI, B et al (Eds.) 2014. Connecting Histories of Education: Transnational and cross-cultural exchanges in (post)colonial education. New York: Berghahn.
BHARGAVA, R. 2013. Overcoming the Epistemic Injustice of Colonialism. Global Policy, 4, 413-417.
BRANDÃO, C.R. 2007. O que é educação? São Paulo: Brasiliense.
CARVALHO, X.V. 2023. Memories of (un)Freire literacy policies in Southern Africa from the 1970s on: Telling the (hi)story through life histories and photography of (dis)empowerment in Mozambique. Lusotopie, 22(1). https://journals.openedition.org/lusotopie/6818.
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TUCK, E.; YANG, K. 2012. Decolonization is Not a Metaphor. Decolonization: Indigeneity, Education & Society, 1(1), 1-40.