18. A Educação num mundo interconectado: experiências de libertação do Sul global

Maria Paula Meneses
Centro de Estudos Sociais, U. Coimbra
Xénia Venusta de Carvalho
CRIA, ISCTE, Lisboa

Qualquer leitura, independentemente da sua origem, ao privilegiar uma análise monocultural da diversidade do mundo, reproduz uma lógica exclusivista. O projeto racional eurocêntrico vai criar a alteridade como um espaço/tempo anterior, onde circulavam saberes considerados ‘inferiores’, com alcance local (MENESES, 2018). Este foi o contraponto que legitimou a imposição violenta da estruturação hierárquica que está na base da relação de poder-saber do moderno pensamento científico (ALATAS, 1974). Esta relação opera através da permanente imposição de um pensamento abissal que divide o mundo em duas partes: o mundo moderno eurocêntrico, de um lado, e os ‘outros’ espaços, coloniais, da tradição, dos primitivos, do ‘outro’ lado da linha (SANTOS, 2007: 45-47). Neste contexto, o Sul global refere-se metaforicamente aos seres e saberes que foram silenciados, localizados ou destruídos fruto da relação violenta, do capitalismo, colonialismo e patriarcado sobre ‘a alteridade. É por isso que o Sul global é, simultaneamente, uma proposta utópica ontológica, política e epistemológica.
No campo da educação – domínio da cultura -, a colonização tem atuado através de processos de violenta intervenção política e epistemológica, os quais resultaram na suspensão do crescimento orgânico das instituições e das histórias dos colonizados. Como estrutura conceptual geradora de politicas de violência o colonialismo tem, necessariamente, várias leituras, dependendo das relações de poder que justificam esta intervenção. Se nos países colonizadores a ação colonial se legitimou e continua a legitimar-se sob a forma de ‘contributo civilizador’, para os colonizados, falando a partir da sua experiência, o colonialismo encerra em si uma violenta força opressora, como identificado por Césaire:
Eu, falo de sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas (CÉSAIRE, 1955: 12).
Consequentemente a colonização tem-se traduzido em incontáveis atos de genocídio e epistemicídio (SANTOS, 2018), linguicídio (THIONG’O, 1993) e injustiça epistémica (BHARGAVA, 2013), cujos efeitos se continuam a sentir no quotidiano de muitas realidades educativas. A conquista, esse objeto da aventura colonial, refere-se não apenas a bens e de terras; pelo contrário, o seu objetivo final é a conquista das culturas e mentes dos colonizados, preenchendo as suas referências com propostas eurocêntricas. De forma premeditada, a colonização moderna, como instrumento de poder, tem procurado de forma insidiosa apagar ou reafirmar a periferização dos seres e saberes que não se conformam com as suas referências, apagando as referências a outros passados anteriores à chegada europeia. Um dos pilares deste processo, sobretudo no que se tem vindo a teorizar como colónias de povoamento (MENESES, 2018), é a tentativa de ou destruir ou secundarizar os saberes das pessoas colonizadas e subalternizadas, através da imposição violenta de conceitos e categorias exógenas que garantiram e continuam a garantir a representação e direção geopolítica eurocêntrica dos ‘novos’ territórios e sujeitos (MUDIMBE, 1988). Ao tentar interromper as prioridades educativas das sociedades submetidas, o colonialismo produziu (re)construções de identidades e histórias, reconstruindo, a partir das suas referências, a narrativa e a imagem dos colonizados (MENESES, 2016).
Nos atuais contextos africanos, apesar de a maioria das colónias ter atingido a independência política, a permanência da relação colonial continua presente ao nível político e epistemológico – os saberes dos ‘outros’ continuam a ser conceptualizados como inferiores ou locais, reproduzindo a dominação epistemológica colonizador-colonizado. Em muitos dos países que saíram da relação colonial o moderno projeto eurocêntrico continua a perpetuar-se através da educação, onde escola tem habitualmente o papel de padronizar e de homogeneizar o saber considerado válido. O eurocentrismo, como projeto civilizador, apoia-se num um imenso corpo de conhecimento hegemónico: as epistemologias do Norte. Insistindo no mito da ‘Europa’ como centro do saber (MBEMBE, 2014: 128), este projeto moderno insiste em impor-se – ao nível das categorias fundamentais – como espelho da sociedade do conhecimento, gerando desta forma um desconhecimento abissal arrogante sobre o lado colonizado. É assim que se perpetua a o não reconhecimento dos seres e dos saberes que (re)existem nos territórios, submetidos a opressão, o Sul global.
Uma abordagem global ao processo educativo colonial revela a natureza paradoxal do processo de colonização, associada a várias tentativas de assimilação e de homogeneização cultural (BAGCHI et al., 2014). Porém, como Paulo Freire sublinhou (1987), a tomada de consciência sobre a natureza da sua situação pelos oprimidos, assim como a identificação do opressor, são elementos chave para um envolvimento numa luta libertadora, a partir das suas forças, experiências vividas e saberes.
Entre os povos de antigas colónias de povoamento, a permanência das relações coloniais é obvia. Um dos exemplos é o da ‘obrigação’ do uso de línguas coloniais na educação (com as línguas nacionais/autóctones a serem relegadas para uso local, substituídas pelas línguas dos colonizadores); outros exemplos advêm da expropriação de fragmentos de saberes dos mundos indígenas, os quais são extraídos e apropriados pelas epistemologias do Norte para construir a riqueza dos colonizadores (TUCK e YANG, 2012: 4). A ocupação dos territórios, a transformação dos seus povos em estrangeiros na sua própria terra é um dos exemplos que ilustra a íntima relação entre o capitalismo e o colonialismo racial, uma relação repleta de violência: “Eles [colonos] chegaram, Eles viram, Eles nomearam e Eles impuseram-se” (SMITH, 1999: 80).
Na senda da análise de Fanon sobre a violência colonial, neste painel o colonialismo é usado num sentido amplo para fazer referência aos modos modernos de dominação baseados na privação epistemológica e ontológica, ou seja, a recusa em reconhecer a humanidade plena do outro (MENESES, 2018). A participação nos processos emancipadores do Sul tem-se revelado instrumental na denuncia das situações de ‘subalternidade’ e silenciamento epistémico e ontológico, e na legitimação de saberes forjados nestas lutas por uma justiça global, social, económica e epistemicamente mais igualitária, onde a pedagogia da e para a liberdade, é uma ação coletiva (CARVALHO, 2023). A ação libertadora, fruto da tomada de consciência das comunidades, dos grupos oprimidos (FREIRE, 1987: 56) traduz o carácter eminentemente pedagógico de qualquer transformação revolucionária, em que o método é a própria consciência enquanto caminho para algo apreendido com intencionalidade. Aqui, educador e educandos estão mutuamente envolvidos na mesma tarefa enquanto sujeitos, desmistificam a realidade e criticando-a para conhecê-la melhor, recriando o conhecimento, descobrindo-se como (re)fazedores permanentes de saberes que desafiam as injustiças cognitivas. Esta opção pedagógica assenta no reconhecimento de presença de várias formas de ensinar e aprender. Este reconhecimento espelha o facto de a educação operar em múltiplos contextos, mesmo onde não há escola oficial, através de redes e estruturas sociais que garantem a manutenção e transmissão de saberes entre gerações. Como Brandão destaca, “não há uma forma única de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante” (2007: 9). Sendo assim, que saberes deverão estar presentes num processo educativo emancipador, quando a vida de inúmeros povos e comunidades do Sul global está em risco? Que saberes transportam as mulheres comuns, cujas falas são frequentemente omitidas?
O enfoque deste painel centrar-se-á numa análise crítica em torno a dois eixos: por um lado, a persistência do legado colonial na educação contemporânea, um legado que produz uma “mente acrítica e imitativa, dominada por uma fonte externa, cujo pensamento torna impossível qualquer perspetiva independente” (ALATAS, 1974: 692); por outro lado, procura, a partir de alguns exemplos situados, valorizar a diversidade e a especificidade de outras experiências e saberes através das lentes da educação relacionadas à (re)produção de saberes, às línguas e às práticas culturais. Essas interconexões são fundamentais para nossa compreensão das ecologias de saberes, e para o desenvolvimento de traduções interculturais a partir de uma praxis de descolonização.

Bibliografia

ALATAS, S. 1974. The Captive Mind and Creative Development. International Social Science Journal, 36(4), 691-699.
BAGCHI, B et al (Eds.) 2014. Connecting Histories of Education: Transnational and cross-cultural exchanges in (post)colonial education. New York: Berghahn.
BHARGAVA, R. 2013. Overcoming the Epistemic Injustice of Colonialism. Global Policy, 4, 413-417.
BRANDÃO, C.R. 2007. O que é educação? São Paulo: Brasiliense.
CARVALHO, X.V. 2023. Memories of (un)Freire literacy policies in Southern Africa from the 1970s on: Telling the (hi)story through life histories and photography of (dis)empowerment in Mozambique. Lusotopie, 22(1). https://journals.openedition.org/lusotopie/6818.
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MBEMBE, A. 2014. Sair da Grande Noite. Ensaio sobre a África descolonizada. Luanda: Mulemb.
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TUCK, E.; YANG, K. 2012. Decolonization is Not a Metaphor. Decolonization: Indigeneity, Education & Society, 1(1), 1-40.