29. As Ilhas Canárias perante o dilema descolonial: repensar a África a partir da sua complexidade

Silvia Cristina Zelaya Álvarez
Universidad de la Laguna
Roberto Gil Hernández
Universidad de La Laguna

As universidades europeias e espanholas promovem cada vez mais a internacionalização como forma de responder aos desafios de um mundo cada vez mais globalizado (Fundação CYD, 2023). Entretanto, as ligações e conexões com as universidades africanas permanecem invisíveis ou carecem de apoio suficiente para a sua concretização. Isto deve-se à força com que certas lógicas coloniais ainda operam no continente, as quais, a par do extractivismo académico que opera nos discursos de abertura ao Ocidente e aos seus supostos benefícios, intensificam os mecanismos de controlo sobre os corpos e os conhecimentos não ocidentais. Como pensar o “dilema decolonial” neste contexto? Este painel pretende explorar esta questão, assumindo o lugar que o arquipélago das Canárias pode desempenhar para tornar visível a diversidade de formas de pensar, saber e fazer que podem ser englobadas na perspetiva descolonial.

Procuramos afastar-se dos discursos hegemónicos – como a internacionalização ou a inovação educativa – para dialogar com trabalhos que reflictam criticamente sobre o impacto destes dispositivos de saber e poder em corpos e territórios que experimentaram a violência inerente às guerras de conquista, epistemicídio, escravatura e colonialismo no passado e, no presente, a violência gerada pelo neocolonialismo e pelo extractivismo económico que conduzem a modelos agro-industriais e turísticos insustentáveis, bem como a formas recentes de extractivismo epistémico. Em suma, estamos a falar de espaços que podem ser ajustados à noção de colonialidade do poder (Quijano, 2000).

A colonialidade, tal como foi pensada por Aníbal Quijano, defende a ideia de que a raça se torna o principal padrão de poder global a partir da expansão europeia moderna. Mas também tem em conta a “multi-inserção” deste marcador com categorias como classe, género e conhecimento (Quijano, 2014). Este quadro de análise tem sido alargado por autores como Walter Mignolo, com a sua ênfase na necessidade de articular um “outro conhecimento” que favoreça a desocidentalização e a descolonização do conhecimento (Mignolo, 2015). Ao mesmo tempo, subscrevemos a crítica de Ramón Grosfoguel à epistemologia ocidental e a sua proposta transdisciplinar de articular uma visão do mundo baseada na “pluriversalidade” (Grosfoguel, 2022), que segue o caminho anteriormente traçado por Enrique Dussel e a sua ideia de “transmodernidade” (1994). Consideramos também essenciais os contributos que autoras feministas como María Lugones (2008), Rita Segato (2013) e Ochy Curiel (2021) têm dado a esta discussão sobre o alcance da colonialidade.

No continente africano, a crítica à predominância da componente ocidental na gestão da diferença não é nova. Intelectuais de renome como Frantz Fanon (1967); Kwame Nkrumah (1965); Chinweizu (1987); Ngugi wa Thiong’o (1986) já problematizaram esta questão nas suas respectivas obras. No entanto, nas universidades europeias são poucos os programas de ensino que incluem as suas ideias e tomam como referência formas não eurocêntricas de produção de conhecimento. Entretanto, assistimos à emergência de um interesse renovado pela produção de conhecimentos que respondem a outras genealogias. Isto é atestado por investigadores como Ndlovu-Gatsheni (2015, 2018), do Zimbabué, nos seus esforços para tornar visíveis as epistemologias do Sul Global.

Neste contexto, as Ilhas Canárias destacam-se como um território muito complexo, mas também como um território potencialmente transformador. O arquipélago funciona como uma “fronteira imperial” (Gil Hernández, 2022), uma vez que se trata de um território administrativamente europeu que, no entanto, se situa no noroeste de África. Por esta razão, a realidade canária partilha alguns dos problemas que afectam o continente, como a sua elevada dependência política, social e económica do exterior, o risco crescente de sofrer os efeitos mais graves das alterações climáticas e a presença estratégica de diferentes potências no seu território por razões de segurança.

Os principais poderes nas ilhas, em Espanha e na União Europeia abordam esta complexidade recorrendo a todo o tipo de eufemismos. O seu objetivo é contornar o enquadramento problemático das Ilhas Canárias tanto na sua realidade geográfica imediata como na arquitetura institucional em que se insere, através do reconhecimento do seu “facto diferencial”, da sua vocação “atlântica” ou “tricontinental” e também da sua “ultraperificidade” (Gil Hernández; Fernández Hernández e Zelaya Álvarez, 2023). No entanto, o nosso interesse é transcender a tensão deste tipo de discursos dissimuladores para possibilitar a emergência de espaços de encontro, produção e contestação que explorem outras formas de conhecimento e de estar no mundo. Esta é a perspetiva que utilizamos para explorar as relações sociais entre corpos e territórios que acompanham as iniciativas políticas e culturais empenhadas em repensar o futuro do mundo a partir da diversidade de horizontes que o continente africano oferece.

Quando levantamos esta discussão a partir das Ilhas Canárias, estamos conscientes de que para certos grupos sociais, como as mulheres, os migrantes do Sul Global, as massas empobrecidas e exploradas da população, estas relações são marcadas por formas de representação que geralmente os mostram como vítimas, mas nunca como pessoas capazes de contribuir com conhecimento e valor a partir das suas próprias realidades (Zelaya, 2023). Assim, embora sejam por vezes chamados pelos académicos a dar “testemunhos” das suas experiências, raramente são tidos em conta como sujeitos com uma capacidade real de influenciar a sua realidade, cumprindo o papel intelectual de peritos.

Em suma, este painel convida aqueles que pensam, investigam e trabalham no tecido social canário – referimo-nos a pessoas nascidas nas ilhas e no continente africano – a partilhar a sua visão crítica sobre o funcionamento das suas instituições, associações culturais e colectivos políticos. Convidamos todas estas pessoas a apresentar trabalhos académicos, literários, performativos, audiovisuais, etc., que tentem dar respostas que não escapem ao dilema decolonial que atravessa a realidade das Canárias; respostas que enfrentem a complexidade que descreve a sua localização africana, bem como a sua capacidade de gerar transformações, aprendizagens e experiências que nos ajudem a imaginar outro mundo possível.

Bibliografia

Chinweizu. (1987). Decolonizing the African Mind. Lagos, Pero Press.
Curiel, O., & Falconí, D. (2021). Feminismos decoloniales y transformación social. Madrid: Icaria.
Dussel, Enrique (1992). El encubrimiento del Otro. Hacia el origen del ‘mito de la Modernidad’. La Paz: Plural.
Fanon, F. (1967). Black Skin, White Masks. New York, Grove Press.
Fundación CYD (2023). El reto de la internacionalización de la universidad española. Madrid: Cámara de Comercio de España.
Gil Hernández, R. (2022) En el nombre de Canarias. Representar la sociedad del Archipiélago más allá de su imposibilidad. Santa Cruz de Tenerife: Tenerife Espacio de las Artes (TEA).
Gil Hernandez, R., Fernández Hernández P. y Zelaya Álvarez, S. C. (Eds.). (2023). “Pensar las canariedades. Una genealogía posible”. En Canariedades. Textos para pensar una Canarias Otra (pp. 25-60). Islas Canarias: Ediciones Tamaimos.
Grosfoguel, R. (2022). ¿Qué significa descolonizar las ciencias sociales? Entrevista a Ramón Grosfoguel (Utopía y Praxis Latinoamericana ed., Vol. 27). https://doi.org/10.5281/zenodo.6634998
Lugones, M. (2008). “Colonialidad y género”. Tabula Rasa, 9: 73-101.
Mignolo, W. (2015). Trayectorias de re-existencia: ensayos en torno a la colonialidad/decolonialidad del saber, el sentir y el creer (Universidad Distrital Francisco José de Caldas ed.). Pedro Pablo Gómez (editor académico).
Ndlovu-Gatsheni, S. J. (2015). Decoloniality as the Future of Africa. https://doi.org/10.1111/hic3.12264
Ndlovu-Gatsheni, S. J. (2018). Epistemic freedom in Africa: deprovincialization and decolonization. Routledgle.
Ngugi wa Thiong’o. (1986). Decolonizing the Mind: The Politics of Language in African Literature. Nairobi, Heinemann.
Nkrumah, K. (1965). Neo-colonialism: The Last Stage of Imperialism. New York. International Publishers.
Quijano, A. (2000). “Colonialidad del poder y clasificación social”. En Giovanni Arrighi y Walter L. Goldfrank (Eds.). Festschrift For Immanuel Wallerstein. Journal of World Systems Research, 4(2): 342-388.
Quijano, A. (2014). Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. CLACSO. “http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140507042402/eje3-8.pdf”
Segato, R. (2013). La crítica de la colonialidad en ocho ensayos. Buenos Aires: Prometeo.
Zelaya, Silvia (2023) Control migratorio, racismo y canariedad. Una aproximación antropológica. En Canariedades. Textos para pensar una Canarias Otra (pp. 405-431). Islas Canarias: Ediciones Tamaimos.