13. Cidades africanas: abordagens decoloniais a processos e fenómenos da urbanização contemporânea

Silvia Amaral
Centro de Estudos sobre Africa e Desenvolvimento da Universidade de Lisboa (CEsA/ULisboa)

O nosso futuro é urbano. Quando foram lançados os Objectivos para o Desenvolvimento Sustentável previu-se que em 2050 dois terços da população mundial habitará em cidades. A urbanização é um processo de transformação demográfica, espacial, económica, ambiental e sociocultural das sociedades, através do aumento e movimento populacional; da transição de meios de subsistência agrários para economias monetárias baseadas no comércio, serviços ou indústria; do aumento da distância entre os lugares de extração dos recursos, do seu consumo e da gestão dos resíduos resultantes; da expansão de assentamentos e da aglomeração de pessoas e infraestruturas; da transição de relações e identidades étnico-familiares para socialidades heterogéneas e cosmopolitas (Satterthwaite & Tacoli, 2003; Jenkins, 2013; Nações Unidas, 2018). Estes processos aconteceram gradualmente ao longo da história humana, desde o início da produção agrícola e da sedentarização, consolidando-se durante a Revolução Industrial. Em meados do século passado começou a aceleração dramática da urbanização das sociedades no chamado “Sul Global”, a partir de cidades ancestrais e coloniais, que se tornaram capitais dos novos estados independentes e cresceram exponencialmente, e de centros urbanos que acolheram o êxodo rural produzido por lutas de libertação nacional, programas socioeconómicos de ajustamento estrutural e pela abertura global à economia de mercado. Por isto se considera que vivemos na “revolução urbana” (Lefebvre, 1970).
No continente africano, os processos de urbanização ocorreram em contextos histórico-geográficos específicos, pelo que embora semelhantes às cidades em todo o mundo, os centros urbanos africanos exibam características peculiares decorrentes de legados coloniais, práticas neoliberais de extrativismo e industrialização limitada (Fay & Opal, 2000; Anderson et al, 2013). O aumento acelerado das populações urbanas, a informalidade e a migração circular, a interdependência com os territórios rurais adjacentes, as relações sociais impregnadas de ruralidade e as formas híbridas de governança entre autoridades costumárias e institucionais caracterizam estes processos de urbanização (Pieterse & Parnell, 2014; Pieterse, 2017).
Contudo, o estudo da formação e desenvolvimento das cidades surgiu formalmente a partir de fenómenos de urbanização observados na Europa e na América do Norte a partir do séc. XIX, consequentes da industrialização e crescimento económico, do êxodo rural e do surgimento da burguesia e do proletariado como novas classes sociais. A urbanização euro-americana foi tomada como paradigma do “desenvolvimento” e da “modernidade” urbanas, e a racionalidade, a eficiência, e mais recentemente, o desenvolvimento “verde” e “inteligente” tornaram-se condições para o “sucesso” urbano, comparativamente ao “resto do mundo” (Robinson, 2006). Este eurocentrismo, baseado na diferença, na separação e na hierarquização, materializou-se em pressupostos normativos sobre « as outras cidades » como lugares problemáticos de caos e fracasso, recusando as suas características intrínsecas, desenvolvimentos alternativos e modernidades originais (Simone, 2004).
A sociologia urbana positivista procurou formular teorias generalizáveis e prever desenvolvimentos futuros para as sociedades urbanas, utilizando modelos matemáticos e análise estatística para testar hipóteses (Koch & Latham, 2017, eds.). Esta abordagem quantitativa das cidades como redes de infraestrutura, burocracia e tecnologia negligencia as suas dimensões qualitativas, sensoriais e vividas; ignora as forças estruturais que moldam as cidades – capital, classe e política – nos seus contextos territoriais e históricos, e os seus produtos de fragmentação e hierarquização espacial e injustiça social, especialmente para os habitantes pobres e minorias étnicas (Mbembe & Nuttal, 2004; Koch & Latham, 2017, eds.). Mas ao ver as cidades como resultado de interações económicas e institucionais também se ignoram outros tipos de divisão além da classe – como raça, religião e género – e desvalorizam-se as iniciativas dos urbanitas que co-criam a cidade, vistos como vítimas de forças estruturais; a governança formal é apenas um lado da vida urbana, pois as redes informais de interação desempenham um papel fundamental na prestação de serviços, na resolução de problemas e na criação de oportunidades (Simone, 2004).
Para além disso, sociedades anteriormente colonizadas não podem ser totalmente compreendidas sem abordar os impactos do colonialismo, sobretudo ao nível da produção e disseminação do conhecimento. Assim, académicos urbanos contemporâneos reivindicam as “outras cidades” como igualmente válidas para forjar teoria urbana, pois em cada cidade são observáveis características comuns de urbanização e globalização, em diversos níveis e escalas (Robinson, 2006). Urbanistas interdisciplinares propõem comparações horizontais em vez de hierarquizações verticais para apreender os motores da (trans)formação urbana – como as cidades são feitas e vividas pelos seus habitantes nas suas vidas materiais, nos seus significados subjetivos e interações coletivas; com os seus desafios diários e as estratégias que definem para superá-los (Myers, 2001; Parnell & Pieterse, 2016; Patel, 2016). Esta crítica questiona modelos, teorias e métodos de investigação exógenos pouco adequados a contextos de governança frágil, irregularidade de dados, grandes carências humanas e segurança instável de muitas cidades globais. Métodos colaborativos, interdisciplinares, comparativos e mistos de co-produção de conhecimento podem abranger as complexas dimensões quantitativas e qualitativas do urbano e criar pontes entre académicos, decisores políticos, profissionais e urbanitas, para estimular o desenvolvimento urbano positivo. Vozes não académicas do cinema, arte, fotografia, jornalismo e literatura devem ser aceites como válidas para analisar, teorizar e comunicar a cidade. Académicos-ativistas contemporâneos advogam pela “descolonização” da investigação científica, transitando do “extrativismo” académico para a colaboração, cientes das dinâmicas de poder entre pesquisadores e participantes e dos produtos científicos convencionais que as reforçam (Parnell & Oldfield, 2014, Eds.; Gubrium & Harper, 2016 ; Marrengane & Croese, 2020, Eds.).
Um exemplo desta crítica é o construto de Southern Urbanism, formulado por académicos do African Centre for Cities da Universidade de Cape Town (Pieterse, 2015; Schindler, 2017), a partir da rápida urbanização dos continentes africano e asiático: teorias enraizadas nas diversas realidades (grounded theory) e experimentações metodológicas interdisciplinares com ferramentas participativas e proposições endógenas são cruciais para produzir conhecimento útil para o desenvolvimento urbano e a sustentabilidade. Outros construtos decoloniais como Indigenous Knowledge (Owusu-Ansah & Mji, 2013) e Relational Research (Gerlach, 2018) vinculam a produção de conhecimento aos contextos histórico-culturais específicos, rejeitando a “neutralidade objetiva” do positivismo eurocêntrico e defendendo que o conhecimento também é experiencial e coletivo. Estes construtos questionam a teoria urbana dominante e são úteis para analisar criticamente as cidades.
Neste quadro teórico pretende-se, com este painel, convidar à discussão de abordagens decoloniais aos estudos urbanos no continente africano, que analisem fenómenos e processos espaciais, sociais, económicos, ambientais ou políticos da urbanização contemporânea, através de diversos conceitos teóricos e práticas metodológicas.

Bibliografia

Anderson, P.M.L., et al (2013). Regional Assessment of Africa. In Elmqvist, T. et al. (eds.). Urbanization, Biodiversity and Ecosystem Services: Challenges and Opportunities: A Global Assessment, doi.org/10.1007/978-94-007-7088-1_23
Fay, M., Opal, C. (2000) Urbanization Without Growth: A Not-so-Uncommon Phenomenon. Policy Research Working Paper. The World Bank. ssrn.com/abstract=632483
Gerlach, A. (2018). Thinking and researching relationally: Enacting decolonizing methodologies with an Indigenous early childhood program in Canada. International Journal of Qualitative Methods 17, 1–8. doi.org/10.1177/1609406918776075
Gubrium, A., & Harper, K. (2016). Participatory Visual and Digital Methods. Routledge. doi.org/10.4324/9781315423012
Jenkins, P. (2013) Urbanization, Urbanism, and Urbanity in an African City: Home Spaces and House Cultures. Palgrave Macmillan New York. doi.org/10.1057/9781137380173
Koch, R., & Latham, A. (2017, Eds.). Key thinkers on cities. SAGE Publications Lda. https://doi.org/10.4135/9781473983243
Lefebvre, H. (1970). The Urban Revolution. Traduzido por Bonnono, R., University of Minnesota Press. oikodomos.org/workspaces/app/webroot/files/references/text/adiaconu_27_ Section_1_Lefebvre.pdf
Marrengane, N., & Croese, S. (2020, Eds.). Reframing the urban challenge in Africa – Knowledge co-production from the South. Routledge. doi.org/10.4324/9781003008385
Mbembe, A., & Nuttal, S. (2004). Writing the world from an African metropolis. Public Culture 16(3), 347–372. doi.org/10.1215/08992363-16-3-347
Myers, G. (2001). African cities – Alternative visions of urban theory and practice. Zed Books
Nações Unidas (2018). World Urbanization Prospects: The 2018 Revision. Departamento dos Assuntos Económicos e Sociais. doi.org/10.18356/b9e995fe-en. un-ilibrary.org/content/books/ 9789210043144
Owusu-Ansah, F. E., & Mji, G. (2013). African indigenous knowledge and research. African Journal of Disability 2(1), Art. #30, 5 pages. doi.org/10.4102/ajod. v2i1.30
Parnell, S., & Oldfield, S. (2014, Eds.). The Routledge Handbook on Cities of the Global South. Routledge.
Parnell, S., & Pieterse, E. (2016). Translational global praxis: rethinking methods and modes of African urban research. International Journal of Urban and Regional Research 40(1). doi.org/10.1111/1468-2427.12278
Patel, S. (2016). A Decolonial Lens on Cities and Urbanisms – Reflections on the System of Petty Production in India. Working paper Series 245, Asia Research Institute, National University of Singapore. ari.nus.edu.sg/wp-content/uploads/2018/10/wps16_245.pdf
Pieterse, E. (2015). Epistemological Practices of Southern Urbanism. In Ding, W., et al (Eds.). Cities in transition: Power, environment, society, 311-325. nai010 Publishers.
Pieterse, E. (2017). The City in Sub-Saharan Africa. In: Short, J.R. (ed.) A Research Agenda for Cities. Edward Elgar Publishers. doi.org/10.4337/9781785363429.00027
Pieterse, E., Parnell, S. (2014). Africa’s urban revolution in context. In Parnell, S., & Pieterse, E. (eds.) Africa’s Urban Revolution. Zed Books. ISBN 9781780325217
Robinson, J. (2006). Ordinary cities between modernity and development”, Routledge.
Satterthwaite, D., Tacoli, C. (2003). The urban part of rural development: the role of small and intermediate urban centres in rural and regional development and poverty reduction. Working Paper Series on Rural-Urban Interactions and Livelihood Strategies, Working Paper 9. International Institute for Environment and Development, www.iied.org/9226iied
Schindler, S. (2017). Towards a paradigm of Southern urbanism. City 21(2), 47-64. doi.org/10.1080/13604813.2016.1263494
Simone, AM., (2004). People as infrastructure: Intersecting fragments in Johannesburg. Public Culture 16(3), 407–429. doi.org/10.1215/08992363-16-3-407