23. LITANIA DE VIDA: ESTÉTICA DA MORTE, REAL E SIMBÓLICA, NA LITERATURA MOÇAMBICANA

Edimilson Rodrigues
Universidade Federal do Maranhão - UFMA/LIESAFRO-PPGAFRO
Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ/PPGLEV
Carmen Lucia Tindó Secco
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ/PPGLEV

DELIMITAÇÃO DO TEMA
A presença do elemento morte na literatura africana de língua portuguesa, mais precisamente como elemento real que se adere ao símbolo metafórico, é marcante na literatura moçambicana. Vários autores a tangenciam, dentre eles, Virgílio de Lemos, José Craveirinha, Eduardo White, Carlos Patraquim, só para citar alguns. Vale o destaque para o poeta e prosador Nelson Saúte (1993, 1999, 2000, 2007) quem, como aduz a professora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, cria uma “‘estética de Tânatos’, trazendo os mortos para dentro de seus versos” (Secco, apud Dopcke, 1998, p. 223), diríamos que, para dentro da vida, com a delicadeza e a força da literatura que cria a retórica da morte dos “Anos de uma ilusão destruída diante dos nossos olhos por mãos humanas como as nossas. Anos de uma grande quimera (…) anos da morte, da violência” (Saúte, 2000, p. 141). Desde essa narrativa de sobreviventes decalcada na tematização da morte que o painel LITANIA DE VIDA: ESTÉTICA DA MORTE, REAL E SIMBÓLICA, NA LITERATURA MOÇAMBICANA se revela como um estudo de e sobre escarificações sociais, históricas, literárias, e, logo, sobre a violência real e simbólica, na literatura moçambicana. Nela encontramos “uma deambulação pela história recente de um país recém-chegado ao mundo e de gente que não se demarcou do estado de fantasma” (Couto, apud SAÚTE, contra capa, 2007) no plano do literário, pois, literatura e história, sociologia e literatura, por exemplo, não lidam com objetos diferentes, lidam com os mesmos objetos, mas de modo diferente, a palavra. Assim, dialogando com Ana Mafalda Leite (1998), a palavra africana apresenta “O conflito entre o mundo tradicional e o mundo urbano, entre os valores míticos da cultura camponesa e a fria racionalidade dos acontecimentos bélicos, caracterizados pela tecnologia sofisticada da guerra” (Leite, 1998, p. 41), melhor, das guerras vividas no espaço moçambicano.
Nas obras, os poetas possibilitam recuperar, através dos ícones das guerras, as violências reais e simbólicas, as escarificações sociais sofridas por Moçambique, e ainda, despertar a consciência do sujeito coisificado pelos termos da verdade sobre o sistema colonial: violento, opressor e nefasto com palavras surpreendentes e uma linguagem apurada no sentido do verossímil – desde a ‘margem do silêncio’ que revela as atrocidades da vida: “A mãe beijou a pólvora/ no sorriso morto do filho./ Despiu a capulana e cobriu-o.// E depois vestiu as lágrimas” (Saúte, 2004, p. 596).
O ESTADO DA ARTE
A literatura moçambicana produzida na década de 80 apresenta a pulsão literária da morte, traduz uma literatura de denúncia, visto que, “A autenticidade de um povo submetido física e culturalmente”, (Cosme, apud Ferreira, 1976, p. 289), visível, aqui, no signo da literatura da tânatos é transmitida, segundo Leonel Cosme, da única maneira possível: “a revolta, a que um certo realismo literário veio dar forma mais sensível”.
O presente estudo pretende demarcar a presença dos escritores moçambicanos cuja temática sobre a morte é, também, uma poética dos sobreviventes, visto que são escritores de clandestinas confissões, criadores de uma literatura denunciadora, impressa no símbolo da morte. Essas são criações que nos levam a entender os momentos históricos e sociais pelos quais passaram os sujeitos africanos quando do domínio dos colonizadores. Isto porque, dialogando com (Ricciardi, 1971, p. 80), entendemos que “O escritor é, pois, um criador, mas, ao mesmo tempo, a sua obra está, toda ela, mergulhada no memento histórico que a origina”: uma literatura que revela os problemas e as dificuldades que, ao longo dos anos 80, passaram os moçambicanos.
Nesse sentido, nossos olhares, sobre os textos dos poetas e prosadores escandirá, como ação e passagem de influxo do histórico para o social e, deste, para o literário, através do saber proporcionado pela sensibilidade linguística e criação estética, posto que, “apreendemos no todo a sua beleza própria” (Candido, 2006, p. 30), pois, “Há nestas histórias, mortos que não encontram a Morte, homens de luto perpétuo que apenas visitam a vida nas cerimônias fúnebres” (Couto, apud Saúte, contra capa, 2007).
Os textos despertam ao enredo trágico que sonda o humano como eterno personagem principal – a morte. Os autores decalcam o enigma inacessível do mistério existencial, perfazem os caminhos do mesmo e sempre transeunte, a morte que põe e propõe os acontecimentos que sustentam tempo e narrativa como impulsos originários do existir findo. Problema que é revelado, ao leitor, através da prosa, quase sempre poética, e da poesia sucinta e objetiva, qual símbolo do binarismo: poetas africanos e sujeitos irmanados na literatura elencando a morte como motivo e o motivo como personificação dos homens vítimas da violência real.
Numa perspectiva antropológica, o poeta, ator social, vivifica seus artefatos, como produtos culturais, criando imagens que despertam o silêncio ao reduplicar a potência do simbolismo: oposição e conflito como engajamento político-literário. Nessa compulsão histórica, resgata as palavras dos escombros do tempo e da memória para sondar o insondável, traduzindo ‘o devir moçambicano de forma excepcionalmente comprometida aos fatos do mundo real’. E, desde aí, há uma dualidade premente, pois, como afirma Pires Laranjeira – “Os homens que escrevem são os mesmos que pensam e que politicam. E fazem-no em Português, domesticando a língua em função das suas virtualidades e finalidades, criando literaturas nacionais numa língua internacional”, (Laranjeira, 1992, p. 14).

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