3. Traços de um arquivo anticolonial africano na Península Ibérica (1933-1975)

jessica falconi
CEsA-Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento/CSG-Investigação em Ciências Sociais e Gestão/ISEG_ULisboa
Maria del Mar García
Universitat Autònoma de Barcelona (UAB)

O Estado Novo português (1933-1974) e a Espanha franquista (1939-1975) partilhavam, para além de uma política repressiva e ultra-católica e de um ideal patriótico enraizado na matriz imperial da época dos descobrimentos e dos conquistadores, uma auto-representação baseada num suposto excepcionalismo que persistiu anacronicamente após a independência da maioria das antigas colónias. Visto de fora, este excepcionalismo era em grande parte real: atraso tecnológico, pobreza, isolamento e mão de obra exportável. Apesar disso, Portugal e Espanha funcionaram como vizinhos que se viram as costas um ao outro. Os estudos pós-coloniais e descoloniais herdaram em grande parte esta indiferença mútua, confirmando a função legitimadora do passado colonial na ascensão de ambos os países à categoria de nações europeias democráticas, modernas e desenvolvidas. Embora existam muitos trabalhos nacionais sobre a criação artística dissidente em ambos os países durante o período especificado (Abellán 1980, Ruiz 2008, Gil 2009, Rojas 2013, Melo 2016, Piçarra 2018, Mateo 2020, Larraz 2023, Falconi, 2024, García 2024), a perspetiva comparativa (Cabrera 2014, Aixelà-Cabré 2024) e, acima de tudo, a questão da participação africana no desenvolvimento de um contra-arquivo anticolonial permanecem assuntos pendentes.

Em Politics of African Anticolonial Archive (el-Malik e Kamola, 2017), el-Malik define o arquivo anticolonial africano como “uma coleção/coletivo de pensadores que colocaram num único quadro um conjunto de ferramentas analíticas que tradicionalmente não ocupavam o mesmo espaço dentro das lógicas da colonialidade: política, governação, identidade, arte, poesia, ciência social, socialismo, religião, teoria, etc.” (el-Malik, el-Malik, e Kamola 2017, 49). No caso ibérico, vale a pena considerar que a censura e a repressão política agravaram a dispersão e a fragmentação de um arquivo informal formado por elementos muito diversos, cujo único denominador comum seria a oposição, a resistência ou, no mínimo, o contraste, em relação aos discursos oficiais. Branwen Gruffydd Jones aponta para um arquivo difuso, cuja “localização” é também transnacional, espalhando-se por diferentes geografias (Jones 2017, 66). O corpus deste arquivo é constituído por múltiplas formas: discursivas e materiais, políticas e poéticas, visuais, verbais e de voz. A dimensão transnacional reflecte a importância da circulação e dos trânsitos como características estruturantes na formação da cultura textual e política do anticolonialismo africano. Mais do que uma forma de recolha de dados, a investigação destas características é uma forma “curatorial” de trabalhar o arquivo, no presente e na Europa, olhando-o mais como um processo do que como um objeto (Jones 2017, 77).

Apesar dos paralelos notórios entre Espanha e Portugal, a magnitude do império português em África contrasta com a natureza residual das possessões espanholas em África. Não podemos também esquecer a dimensão diacrónica do período estudado em ambos os países – desde a instrumentalização propagandística aberta da criação artística até ao assimilacionismo mais ou menos disfarçado (Lusotropicalismo, Hispanidad) – e as particularidades específicas de cada um deles – o impacto do desenvolvimentismo tardo-franquista. Coloca então a questão de saber quais são os limites de critérios como a dissidência e a clandestinidade quando se estuda um conjunto díspar de documentos que, na altura da sua criação, circulavam e/ou se relacionavam de formas muito diversas. Também não podemos ignorar que as operações de discriminação e seleção desempenham um papel na constituição de qualquer arquivo, criando uma ilusão de totalidade e continuidade (Mbembe, 2002, 21), especialmente no caso de discursos indissociáveis do contexto autoritário e repressivo em que surgiram. Ou seja, para além de uma dissidência direta, há que considerar outras formas de resistência mais discretas ou mesmo ambíguas, e ter em conta que a defesa do pacifismo e do antimilitarismo também foi considerada uma forma de dissidência. Outro aspeto a considerar é a compatibilidade do ativismo com a exigência Rancieriana: o olhar disruptivo deve ser simultaneamente ideológico e estético (Rancière, 2000).

A partir de uma dupla perspetiva comparativa e transnacional, propomos que o contra-arquivo ibérico possa ser investigado a fim de conceber o presente como um arquivo (el-Malik e Kamola 2017, 5-6). O presente em questão é o período pós-colonial de países europeus como Portugal e Espanha que gerem os seus passados coloniais através de modelos de gestão da diversidade nem sempre eficazes (Aixelà-Cabré 2018), sabendo que “a transformação do arquivo num talismã, no entanto, é também acompanhada pela remoção de quaisquer factores subversivos na memória” (Mbembe 2000, 24), e que o contra-arquivo não está imune à questão da “mercantilização da memória” (Mbembe 2002, 25) ou à dupla armadilha da nostalgia e da autenticidade (el-Malik e Kamola 2017, 5).

Esta atividade insere-se no projeto I+D “Africanos, magrebies y latinos (1808-1975). Negritud, resistencias y desracializacion de elites” (BLACKSPAIN) (PID2022-138689NB-I00), financiado por MCIN/ AEI/10.13039/501100011033/ e “FEDER Una manera de hacer Europa”