Desenhar processos de cura Zione em Maputo, Moçambique. Reflexões sobre uma etnografia gráfica retrospetiva.

As igrejas Zione, classificadas como African Independent Churches, fazem parte de um fenómeno transnacional que se difundiu em toda a África Austral no início do século XX. Em Moçambique, a difusão dessas igrejas tornou-se considerável sobretudo a partir da década de 1980 e o fim da guerra civil em 1992. Característica principal das igrejas Zione, realidades fragmentadas e cismáticas, é a cura espiritual através da ação e mediação de profetas.
Ao longo de 2010, para a minha pesquisa doutoral, tentei entender melhor como episódios de aflição e doença eram geridos e reorganizados pelos líderes e membros das igrejas Zione em Maputo, a capital de Moçambique. Durante o processo de escrita que se seguiu, nunca pensei na hipótese de desenhar algumas partes da minha etnografia. No entanto, após a conclusão do meu doutoramento, tive um (re)encontro quotidiano e profissional com a prática do desenho, durante o qual comecei a refletir nas possibilidades e potencialidades de um diálogo entre ilustração e antropologia. Assim, em 2016 “traduzi” pela primeira vez a minha pesquisa etnográfica em Maputo numa linguagem gráfica. Desde então, ciclicamente, por uma inquietação permanente, tenho feito e refeito os mesmos desenhos ligados a esta mesma experiência. Através dos desenhos, queria que os espíritos, elementos invisíveis, mas continuamente presentes nas histórias das pessoas com quem me cruzei, se tornassem entidades visíveis, presentes no papel. Queria também que as cores e os traços me auxiliassem em dar visibilidade às emoções que conheci, incluindo aquelas que experienciei, e à centralidade da corporalidade nas práticas terapêuticas Zione. Na presente comunicação, desejo apresentar os desenhos que elaborei entre 2019 e 2023, partilhando o meu percurso entre experiência etnográfica e expressão artística, entre memoria e afetividade, na tentativa de aprofundar uma reflexão sobre as possibilidades e potencialidades de uma etnografia gráfica, sobretudo retrospetiva, com recurso à ilustração.