Será analisado o livro Geografia do ventre (1968), do escritor Aguinaldo Silva. Compreendemos o narrador do romance como um crítico da história oficial que desmistifica poder da elite latifundiária ao narrar o estupro da filha de trabalhadores rurais negros, residentes na fazenda em condição de “morada” (DABAT, 2003) pelo filho branco de seus patrões. Nosso recorte se debruça sobre a constituição da fazenda São Mateus, espaço onde parte do enredo se desenrola, como um “espaço concentracionário” (FERREIRA-FILHO, 2017). Para isso, o narrador adentra a casa grande e invade a intimidade da consciência da família Cavalcanti de Oliveira. Assim, pai, mãe e filho, são analisados pelo narrador, que os caracteriza como tipos sociais ordinários dos proprietários das plantations de cana e dos usineiros de açúcar. Observamos que o autor desvela o véu do paternalismo patronal por demonstrar como as relações de poder e a ideologia de posse se estendem, não apenas sobre a terra, mas também sobre os empregados, “condenados da terra” (FANON, 2022), vistos pelos patrões como parte do inventário de sua propriedade. As relações entre o público e o privado são devassadas pelo narrador, que expõe a proximidade entre Estado e patronato, evidenciando que pertencer a uma das famílias açucareiras de Pernambuco significava participar da cena política do Estado, vista por elas como uma extensão da casa grande. O romance revisita a história oficial e reivindica seu lugar na literatura nacional ao expor um quadro colonial, classista e racista, ainda tão presente nas relações sociais do trabalho rural contemporâneo.
LICENÇA PARA ESTUPRAR: CLASSE, RAÇA E PODER EM GEOGRAFIA DO VENTRE (1968).
Tiago Calazans Simões
Valéria Amim